Vida, morte, relacionamentos, conversas, entendimento, tênis e frescobol.

Peço desculpas porque escrevi muito. Minha falta de tempo vai tomar teu tempo se você tiver a boa vontade de me ler... Porém acho que vale a pena ler, com calma as linhas a seguir. Há um depoimento e uma prosa. Como é longo, começe por onde preferir.

Ano passado, uma separação difícil. Além da dificuldade do afastamento, das saudades, e dos receios, havia também a frustração com o sentimento de fracasso e muitas dúvida: o que deu errado? Poderia ter sido diferente? Pode ser?

Um dia, encontrei no blog da Sandra, A Frase do Dia, esta frase de Nietzsche:

"As relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar".

Eu sempre acreditei nisto e tenho simpatia pela obra de Nietzsche embora o conheça pouco. Sempre acreditei no diálogo e na busca de entendimento para que as pessoas pudessem de um modo ou de outro aprofundarem os encontros. Cada indivíduo é único e não é possível que duas pessoas se encaixem tão perfeitamente que nunca irrompam desentendimentos, dificuldades de convivência, faltas etc.

Em toda relação deve existir espaço para compartilharmos as frustrações tanto quanto as alegrias. Encontros se fazem com intimidade, não com familiaridade. Familiaridade requer convívio e atenção. Intimidade requer esforço porque se faz justamente pelo movimento de adentrar nas profundidades de outro ser, se faz no movimento de buscar o outro sem deixarmos de ser e com o que carregamos.

Intimidade se constrói, encontros e entendimentos se constroem mas também se renovam porque estamos em constante mudança e mesmo que fosse possível não mudar, ainda haveria em cada ser um infinito para se descobrir. Assim, não pode ser de outro modo. Não existem encaixes perfeitos, não somos peças de engrenagem.

Nunca aceitei que devemos deixar as trombadas, os desentendimentos e os problemas dos relacionamentos humanos quietos. Dar tempo ao tempo dizem... Passam as necessidades, as arestas se desgastam, os motivos íntimos desaparecem, os desejos minguam, os sentimentos se aquietam e se acomodam, os hábitos se sobrepõe, o raciocínio justifica e se inventam soluções.

Resolvido? Não acho. Morre alguma coisa em cada um, e o par, ou o grupo, perde a oportunidade de aprender, de evoluir no que chamam: humanidade. O tempo desgasta a dor mas também revela outras arestas, outros desentendimentos e deixamos novamente o tempo cuidar, ou melhor: descuidar.

Problemas encostados num canto como uma coisa quebrada por que passamos todo dia descuidados... Com o único cuidado de não olhar. Vamos juntando estas pequenas mortes e ficamos impacientes, intolerantes, com medo... Incorporamos desvios e silêncios pesados. Pequenas facas no grande e eterno amor ou amizade que muitas vezes não matam só as relações, matam as gentes mesmo.

Ninguém morre de amor, morremos sem amor mas amor não cai do céu, não se conquista empreendendo jornadas lá fora. Amar não é o objetivo, é o caminho. As grandes batalhas são sempre íntimas e assim, só as fazemos sós mas até lá o caminho não fazemos sozinhos.

O tempo sempre me pareceu bom para curar as feridas e as dores que se impõe na vida da gente quando nada mais se pode fazer: tempo do luto.

Para o que se pode fazer, para o que se deve fazer, deixar ao tempo só "resolve" por acomodamento, por desgaste, por eliminação de causa... E se for para eliminar as causas dos desentendimentos consideramos a possibilidade extrema do isolamento e do afastamento, da descrença no entendimento, na descrença na riqueza dos encontros e das partilhas.

Tanta gente neste caminho! Tanta desesperança e possibilidades que se perdem! Este é o caminho para o extremo do extremo que termina, como nos disse Manuel Bandeira na poesia "Preparação para a morte", com o "fim de todos os milagres".

Eu nunca quis esta trilha, queria algo diferente: errar, lutar, cuidar, aprofundar, mudar, inventar, criar, melhorar... Viver minha solidão inevitável, junto de outra solidão inevitável. Contradição?

Porém, menino que sou, impaciente, aprendiz e errante, ainda não tinha aprendido...

Verdade, já havia lido e ouvido mas não tinha aprendido que há um tempo para tudo, o tempo para cada acontecimento e cada acontecimento tem seu tempo, seu rítmo. Cada pessoa tem seu rítmo... Cada um de nós, infinitos que somos um para o outro, temos o próprio tempo, o próprio rítmo, movimento íntimo, jeito único...

O entendimento é busca incessante que se faz com esforço para não deixar que os desentendimentos deixem de ser problemas simplesmente porque o outro deixa de ser para nós.

Esforço incessante que mas que requer paciência e respeito pelos tempos... Combate difícil porque exige não somente a coragem de não retroceder diante do desconhecido que há em mim e no outro. Exige a busca, a força e o exercício da sabedoria e da paciência, de saber parar, de fazer silêncio, de ouvir, do respeito e da compreensão dos limites: meus, teus, deles, nossos, vossos e deles.

Enfim, eu que nada disto sabia de verdade mas que pensava saber, eu que estava mergulhado em reflexões e muitas angústias, queria entender o que não deu certo, queria entender sobre os relacionamentos: amizades, amores, relações familiares etc. Os que vivi, os que vi as pessoas viverem e os outros de que ouvira uma coisa ou outra. Os que deram certo, de um modo ou de outro, e os que se romperam...

Fui então em busca do nome do livro ou texto com a frase de Nietzsche mas encontrei no caminho uma prosa de Rubem Alves em que a cita. Li, gostei e esqueci: não era o tempo.

Vivi o luto, mas ainda não me conformava porque não havia entendido...

Alguns dias atrás, reencontrei a frase de Nietzsche e me lembrei do texto do Rubem, busquei, reli mas desta vez alguma coisa aconteceu diferente em mim. Fiquei ruminando, ruminante teimoso que sou. No fim da semana passada se fez uma luz que foi clareando e que começa a se tornar aos poucos entendimento, não só pela memória e pela razão, embora também o seja...

É só isto que deixo agora: este depoimento de aprendizado e a prosa de Rubem Alves que é linda e inspiradora... Provecho!

Uma boa semana para todos e que neste feriado o Senhor esteja convosco.

Beijos e abraços!

Tênis x Frescobol de Rubem Alves

Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa.

Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: ‘Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: ‘Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?' Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.’

Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O império dos sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: ‘Eu te amo, eu te amo...’ Barthes advertia: ‘Passada a primeira confissão, ‘eu te amo!' não quer dizer mais nada.’ É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: ‘Erótica é a alma.’

O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada - palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro.

O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra - pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir... E o que errou pede desculpas; e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos...

A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá...

Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Camus anotava no seu diário pequenos fragmentos para os livros que pretendia escrever. Um deles, que se encontra nos Primeiros cadernos, é sobre este jogo de tênis:
‘Cena: o marido, a mulher, a galeria. O primeiro tem valor e gosta de brilhar. A segunda guarda silêncio, mas, com pequenas frases secas, destrói todos os propósitos do caro esposo. Desta forma marca constantemente a sua superioridade. O outro domina-se, mas sofre uma humilhação e é assim que nasce o ódio. Exemplo: com um sorriso: ‘Não se faça mais estúpido do que é, meu amigo'. A galeria torce e sorri pouco à vontade. Ele cora, aproxima-se dela, beija-lhe a mão suspirando: ‘Tens razão, minha querida\'. A situação está salva e o ódio vai aumentando.’

Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão... O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde.

Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem - cresce o amor... Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim...
Do livro:

O Retorno e Terno,
Crônicas de
Rubem Alves
Editora Papirus