Comerciais

Vocês sabem, tem aqueles comerciais....

Comerciais de margarina, apartamentos, carros, celulares, peru de natal... Recortes de pessoas, famílias, casais, filhos, pais e amigos perfeitos sempre associados aos produtos anunciados.

Imagens e recortes onde todos estão sempre sorrindo, superando dificuldades, atingindo seus objetivos, celebrando os momentos maravilhosos de felicidade.

Claro que não se venderiam estas coisas se apresentassem alguns recortes mais próximos da vida real das pessoas e de suas famílias.

Não preciso explicar do que estou falando. Todos conhecemos estes comerciais que criam desejos de conforto e sonhos de felicidades mas todos sabemos bem o que é o dia-a-dia na nossa vida e na vida de tantas pessoas ao nosso redor.

Eu ainda me surpreendo em ver como muita gente busca (sem dar conta disto inteiramente) fazer que suas vidas pareçam como aqueles retratos dos comerciais. É claro que estas pessoas sabem bem que é um comercial e que tudo ali foi preparado para fazer a gente comprar...

Ou será que não sabem?

As formas em si não são ruins mas se focamos na forma esquecemos de que elas não existem como os objetos que procuram vender. Então há o risco de acreditar inconscientemente que estas formas são ideais e objetivos adequados, apropriados e normais.

Difícil perceber que as formas perfeitas são anormalidades.

Quando fixamos objetivos para nossa vida nestes recordes e formas de fora corremos o risco de estreitar o olhar porque estabelecemos estes objetivos como o padrão do que é certo e tudo o mais se torna desvio, erro e falhas que precisam ser corrigidas ou toleradas.

Todos temos problemas todos os dias, desde quando nos levantamos até dormir. O tempo é curto para tudo que temos vontade ou precisamos fazer. As pessoas ao nosso redor tem necessidades como nós e somos sempre chamados para atender, ajudar e participar.

Se ficamos olhando para estas formas dos comerciais, ou para os ideais das revistas e objetivos que as empresas procuram nos vender, a vida se embota porque se torna um tragico laboratório aonde ensaiamos sonhos para que tudo "funcione" perfeitamente.

Assim, sofremos mais do que deveríamos porque de um modo ou de outro caimos na ilusão de que estas formas ilusórias existem em algum lugar mas não existem em nossa vida.

E assim, deixamos de viver o presente, deixamos de perceber os acontecimentos e dádivas reais. O presente, a realidade de cada individuo e das relações, o que é torna-se materia bruta que precisa ser modificada para se tornar um ideal, deixamos o ser pelo não-ser.

Nestas buscas, lutamos por ideais que são fantasias de formas anormais.

Porque o normal está aí no teu dia a dia. O normal e o real são as dificuldades, fraquezas, e todas estas pedras no caminho de nossa vida e da vida de todas as pessoas que encontramos. Somente sobre isto podemos dar respostas autênticas.

Reais são algumas pessoas que encontramos e nos dão belos exemplos de sabedoria porque mesmo diante de dificuldades imensas estão sempre em atitude de gratidão com a vida porque se entregam inteiros para o presente, para o próximo e para o que são.

Ah! A sabedoria de poder se encantar com o mundo sem escolher a cegueira!

Para o universo tudo que acontece no mundo e com as pessoas não é bom ou mal e tudo há de passar. Porém é inegável e inequívoco que há um bom e um mal e existem juntos, ao mesmo tempo, ainda que não possamos compreender com nossas limitações humanas.

Então, mesmo diante das dores, dos sofrimentos e dificuldades ainda existirá ali beleza, mudanças em andamento, renovação, altruísmo, honestidade, amor, sinceridade, caráter, humildade, sonhos por realizar, conquistas pessoais latentes...

Este talvez seja o caminho... Poder ver que tudo está posto no mundo como estamos nós também e mesmo que nos pareçam pedras em nosso caminho, tudo isto é também alimento da vida. São como se diz na Oração: o pão nosso de cada dia.

Alimentos da vida porque nos chamam para a realidade que nos cerca, chamam para o presente e para as pessoas ao nosso redor, chamam para rompermos com tudo que nos leva à estagnação, rompermos com o que nos leva para a morte e para o não-ser.

Isto é o normal, estas são as matéria da vida e os alimentos do ser. Não deveríamos trocar bons alimentos por fantasias e ideais ilusórios porque pagaremos muito caro.

Possamos acolher as utopias e os sonhos porque também precisamos deles mas é somente sobre estas pedras-pães que devemos nos debruçar e obrarmos sem buscar uma forma idealizada que dissem ser mais correta ou que imaginamos ser mais confortável.

Sobre isto devemos lutar o bom combate buscando o possível, com o que temos e somos, respeitando no outro e em nós mesmos: ritmos, limites, dificuldades, sonhos etc.

Só assim, creio que podermos estar no caminho desta tal felicidade que já não terá forma e que justamente por isto, poderá romper das formas mais inesperadas e inimagináveis: muitas e muitas vezes como fonte interminável de milagres nesta jornada com pedras e pães.

Envelhecer

"Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo."
José Saramago



Um ótimo final de semana para todos!

Queres tocar esta flauta?

[HAMLET]
- Não estou compreendendo muito bem. Queres tocar esta flauta?

[GUILDBNSTERN]
- Não sei tocar, meu senhor.

[HAMLET]
- Mas estou pedindo.

[GUILDBNSTERN]
- Podeis acreditar-me: não sei.

[HAMLET]
- Suplico.

[GUILDBNSTERN]
- Não sei tocá-la, senhor.

[HAMLET]
- É tão fácil quanto mentir. Aperta estes furos com os dedos e o polegar; dá-lhe ar com os lábios e o instrumento deixará sair a mais eloqüente melodia. Vê: aqui estão os registros.

[GUILDBNSTERN]
- Mas, não possuindo prática, não conseguiria tirar qualquer som.

[HAMLET]
- Pois, então, que indigna criatura acreditas que eu seja? Estás querendo fazer de mim um divertimento; estás procurando aparentar que conheces meus registros; estás querendo ,arrancar os meus segredos mais íntimos; pretendes sondar-me, fazendo que emita desde a nota, mais grave até a mais aguda de meu diapasão; e possuindo tal abundância de música e tão excelente voz neste pequeno órgão, tu, contudo, não podes fazê-lo falar. Pelo sangue de Deus! Estás pensando que seja eu mais fácil de ser tocado que uma flauta? Toma-me pelo instrumento que melhor te agrade e por muito que me dedilhes, posso garantir-te que não conseguirás tirar qualquer som de mim.

Hamlet, príncipe da Dinamarca. Ato III, Cena II.
William Shakespeare

De volta ao manual...

Faz algum tempo que não escrevo aqui.

Trabalho, cursos e viagens complicaram os horários e acabei me deixando ficar no modo "automático" e assim me afasto da consciência do que acontece comigo e ao meu redor em troca de resultados, prazos e confortos.

Existem dois modos de ser: automático e manual. Lembra do câmbio do carro?

No câmbio automático, pisamos no pedal e ele anda sem nos preocuparmos com as mudanças de câmbio. No câmbio manual precisamos mudar a relação de câmbio ouvindo o motor e avaliando cada situação que vamos enfrentar: subidas, paradas, ultrapassagens etc.

Podemos viver de um modo ou de outro. Um não é pior do que o outro e cada um tem suas vantagens e desvantagens. Como sempre é uma escolha de cada um que se refaz a cada momento. O problema é quando nos esquecemos de que existem as duas possibilidades...

Do mesmo modo como no carro, as pessoas que se habituam ao câmbio automático tem mais dificuldades em dirigir no manual. Já vi isto com pessoas que usaram por toda vida carros automáticos e que tem medo de guiar carros com câmbio manual.

O inverso já não ocorre do mesmo modo. Quando pego um carro automático estranho também mas o estranhamento não me impede de guiar sem problemas. O estranhamento nos desperta. E despertos já não estamos no automático, mesmo que o carro esteja...

Para mim, andar no manual da vida é buscar a consciencia do que me acontece e do que acontece ao meu redor, buscar me orientar e escolher. É não aceitar todas as respostas mas fazer perguntas e me dispor em rever idéias e fazer mudanças.

Viver com consciência é escolher minha comida, minha roupa, o modo como vou dispor meu corpo na cadeira, prestar atenção nos meus passos, fazer perguntas de crianças...

Vivendo assim a gente acorda de manhã e lembra que há um novo dia para viver e que nem sabemos se vamos estar vivos no final do dia. E lembramos que todo ato terá consequências mesmo que não tenhamos a menor idéia de quais sejam...

Enfim, nos tormamos responsáveis e dá um trabalho danado.

Assim, várias vezes escolho pelo automatico, simplesmente porque nestas horas só quero ir, sem me importar em como as engrenagens vão se mover para me dar o resultado e o conforto que desejo.

Porém, como nas viagens que já fiz, onde usei os automáticos, chega a hora de voltar para casa até porque viajar é bom e o automático é bom mas a gente fica com saudades e precisa voltar.

E como nas viagens, adoro voltar para meu carro: durinho e com câmbio manual. É então que posso guiar atento ao ronco do motor, aos instrumentos, ao movimento dos carros e pedestres, aos sinais, aos meus objetivos e desejos.

Prazer único e indescritível de escolher: como quero ir, como quero viver.