Uma das músicas que mais gosto é Disparada que foi composta por Geraldo Vandré e Theo de Barros. Gostaria de compartilhar com vocês alguns comentários sobre a letra e recomendar que a ouçam novamente na voz de Jair Rodrigues.
Prepare o seu coração
Prás coisas
Que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar...
Os versos começam com a recomendação para que nos preparemos. A preparação é necessária para quase tudo em nossa vida mas especialmente para ouvirmos o outro. Quantas vezes realmente nos preparamos para ouvir o outro? Quantas vezes dedicamos alguns segundos de preparação para nos abrimos para a escuta, sem mediações do raciocínio e dos preconceitos?
Ainda mais quando o outro vêm de lugar distante onde nem tudo acontece no conforto e onde a verdade se revela entre o sol e a terra. Estamos acostumados aqui na cidade com tanto conforto, tantas facilidades e com aquela ilusão de civilidade que algumas vezes temos medo e nos afastamos dos fatos, acontecimentos e de nossas verdades.
Então por isto, é preciso a preparação do coração e da mente mas ainda assim, e por isto mesmo, o contador nos avisa que pode não agradar.
Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo
A morte e o destino, tudo
Estava fora do lugar
Eu vivo prá consertar...
Aqui ele se apresenta. Ele não é um homem que concorda com tudo, aprendeu a dizer não. Isto hoje em dia é raro e muitas vezes dizemos sim ou damos aparência de que concordamos com o que não acolhemos no coração por interesses ou conveniência. Porém isto nos tira do lugar.
Ele também aprendeu a aceitar a finitude da vida e os desígnios do destino. Um destino que parece se impor mas veja que ele é homem que aprendeu a dizer não. Ele não vive movido pelas forças circunstânciais mas também tem vontade e livre-arbítrio.
Este é um grande mistério mas é também uma verdade em que nem todos se detém devidamente. Estamos submetidos a morte, ao destino mas também podemos exercer nossas escolhas.
Então ele diz que a morte, o destino e tudo estariam fora de lugar. Por que? Porque na cabeça dos homens está assim. Tudo está e sempre estará em seu devido lugar queiramos ou não. Então ele se apresenta como um que vive para consertar. Parece um tanto arrogante afirmando que vive para consertar. Seria ele capaz? Vejamos...
Na boiada já fui boi
Mas um dia me montei
Não por um motivo meu
Ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse
Porém por necessidade
Do dono de uma boiada
Cujo vaqueiro morreu...
Este é um dos trechos mais belos na minha opinião... Na boiada já fui boi. De que boi ele nos fala? O boi é animal dócil que serve para o abate. Me lembro da professora na escolha que dizia que do boi o homem aproveita tudo! Você ainda está com o coração aberto? Feche os olhos para poder ver o boi no sertão...
Então acontece uma virada na vida deste homem e um dia ele se monta. Montar um animal parece fácil mas não é. Algum tempo atrás eu fazia aulas de equitação e vi que não é fácil. É preciso guiar e dirigir mas só se faz isto com respeito por aquele ser que te serve.
Então ele prossegue contado com palavras de uma beleza pura e fundamentais...
"Não por um motivo meu, ou de quem comigo houvesse." Não foi porque ele quis como tantas pessoas acham que fazem e dizem por ai. E veja só que ele fez isto mas não foi nem mesmo pelas pessoas queridas que estavam com ele. Ele compreende que fez isto por necessidade do dono de uma boiada. Fez pela necessidade de outro diante de uma fatalidade.
Não podemos nos montar por motivo próprio. É preciso respeito e consideração por nós mesmos. Se não houvesse isto ele não poderia se montar. Porém também é preciso respeito com o entendimento de que ninguém pode dominar e controlar os acontecimentos como lhe convém. Ele aceitou ser o vaqueiro, até porque ele era boi dócil e havia a necessidade de outro.
Boiadeiro muito tempo
Laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente
Pela vida segurei
Seguia como num sonho
E boiadeiro era um rei...
Assim ele se tornou boiadeiro por muito tempo. O tempo é necessário para aprofundar e firmar os entendimentos assim como consolidar as experiências. Ele aqui professa que não foi um simples serviço de tocar boi... Ele tornou-se boiadeiro.
E como tal aprendeu a usar o laço firme e fez o braço forte. Esta imagem do laço firme e do braço forte me lembra a consciência que jogamos como um laço para o que escolhemos mas precisamos também desenvolver o braço forte para segurar com determinação.
Então ele revela com maior clareza do que se tratava a vida de boiadeiro: ao longo da vida ele segurou gado e gente. Se relemos isto depois de ouvir tudo dá para sentir a vergonha e o tom quase confessional em que diz que vivia "como num sonho" e se sentia rei.
Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E nos sonhos
Que fui sonhando
As visões se clareando
As visões se clareando
Até que um dia acordei...
Aqui acontece outra mudança mais lenta e gradual. Ele estava em movimento nas patas do seu cavalo e via o mundo rodar e neste movimento ele foi sonhando. Porém aqui ele nos fala de outros sonhos que despertam. Ele revela o contato com a alma e com o mundo e justamente por isto as visões foram se clareando até que um dia ele acordou!
Então não pude seguir
Valente em lugar tenente
E dono de gado e gente
Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente...
Aqui ele revela a transformação do boiadeiro em homem, cantador e gente que vive para consertar... Ele não pode mais seguir sem receio, intrépido e com força quando ele acorda do sonho de boiadeiro rei. E confessa que descobriu que "gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata mas com gente é diferente...".
Eu adoro esta parte. Não é por achar que ele se torna bomzinho... Mas imagine que homem é este que de ser dócil é transformado e jogado nos sonhos de luta e poder mas que não perde contato com sua alma e um dia desperta e descobre algo que transforma sua vida.
Você ainda está com o coração aberto? Lembra do início da letra quando ele pede isto? Lembra que ele ia nos contar coisas do sertão? O que é o sertão para ti? Aonde está o teu sertão? Lembra que ele também avisou que podia não agradar? Ele então reafirma isto.
Se você não concordar
Não posso me desculpar
Não canto prá enganar
Vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado
Vou cantar noutro lugar
Este homem se pôs para colocar as coisas no lugar mas ele sabe que nem todos vão concordar. Ele já foi boi, tornado boiadeiro viu o mundo rodar mas despertou destes sonhos de rei. Ele não pode se desculpar ainda que você não concorde porque sua mensagem tem verdade.
Ele não canta para enganar. Quantos cantam para enganar? Quantas distrações, idéias, filmes, livros, programas de TV e tanta coisa para nos enganar? Ele não quer isto e se é isto que você quer, ele vai te deixar e vai cantar em outro lugar.
E novamente ele repete a fórmula do início de sua transformação aprofundando um pouco mais....
Na boiada já fui boi
Boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém
Que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse
Por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu
Querer ir mais longe
Do que eu...
Leia e medite novamente sobre o que ele diz porque o autor foi muito feliz nisto. Ele já foi rei mas não por ele, não por ninguém que estivesse com ele, não pelo querer ou pelo poder de ninguém... Nem por nada que fosse dos outros para ir mais longe do que ele.
E novamente indica a outra mudança mas também aprofundada:
Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei
Agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte
Num reino que não tem rei
Aqui ele maravilhosamente encerra contando que um dia ele montou e agora ele é cavaleiro. Não é mais boiadeiro mas cavaleiro com laço firme e braço forte mas agora ele tem outro senhor e serve ao reino que não tem rei.
OBS: Em 1966 eu tinha menos de 1 ano mas sei que "Disparada" foi a finalista do II Festival da Música Popular Brasileira da Record junto com "A Banda" de Chico Buarque. Há que se destacar a recusa do Chico de receber o prémio sozinho forçando os organizadores a declarar um empate. Outros tempos que não vivi adulto mas que tenho saudades.