O barulho das xícaras se misturava com os pedidos dos clientes e com o ruído dos motores dos carros e ônibus que vinha da rua. Algumas poucas pessoas se sentavam para conversar ou ler um jornal, mas a maioria engolia o café apressado e seguia para os compromissos da manhã.
Nesta correria dos dias que se iniciavam eu gostava de me sentar com calma ali no balcão e tomar o café da manhã em silêncio antes de ir para o trabalho. Ouvir e observar: quase um ritual.
- Uma média, por favor!
- Um café duplo e um pão na chapa...
Lembro daquele dia em que olhava o vapor que subia da cafeteira de aço inoxidável sem pensar em nada. Aquela nuvem esbranquiçada aquecia o ambiente e subia para o teto. Um homem sentou ao meu lado.
- Uma média e um pão com manteiga, por favor!
O homem devia ter aproximadamente uns 40 anos, barba bem feita, cabelos alinhados, terno, gravata e uma pasta de couro. Colocou a pasta sobre o balcão com um pacotinho colorido. Sacou um jornal da pasta, tirou os óculos do bolso do paletó e começou a ler a primeira página.
- E o pãozinho?
Ele abaixou os óculos e levantou os olhos do jornal para o balconista meio surpreso interrogando-o com os olhos. A pergunta foi refeita:
- O senhor quer o pão torradinho ou só quentinho?
- Ah, só esquenta um pouco. Obrigado. - Voltou os olhos para o jornal.
O atendente passou o pedido para o homem da chapa, encheu um copo de café e foi até o canto do balcão aonde um rapaz com um uniforme olhava para um pedaço de papel em branco sobre a mesa com a cabeça abaixada e os dedos enfiados no cabelo.
Deixou o copo, mas o rapaz nem levantou a cabeça. Voltou com as mãos no queixo e parou na frente do meu vizinho de bancada. Olhou para mim com um sorriso entre os lábios apertados.
Sorri de volta, mordi mais um pedaço do pãozinho torradinho que me deram antes e tomei mais um gole de café.
- Doutor! Posso pedir um favor?
O homem levantou os olhos ainda que meio hipnotizado por alguma informação valiosa que estava lendo.
- Sim?
- O doutor podia deixar eu ver o classificado?
Magro e baixo, os olhos pequenos e brilhantes, os dedos das mãos curtos. O balconista olhava para o homem de terno com um sorriso camarada. O cliente olhou para os lados e depois novamente para ele, então fez um sinal com a mão apontando o jornal e concordando com o empréstimo.
- Obrigado doutor! Eu dobro direitinho depois.
Um sorriso compreensivo do meu vizinho.
- Sabe que é? Eu vou comprar uma gaiola de passarinho...
Novo olhar compreensivo e um polegar para cima em sinal de afirmação. Voltou os olhos para o jornal novamente.
- Pra meu caçula...
O “doutor” então levantou as sobrancelhas. Coçou a cabeça e perguntou contrariado:
- Ele gosta de passarinho?
- Quem não gosta né doutor? Mas nem foi ele que pediu. Eu que vou dar. Eu saio de casa e ele ainda está dormindo. Quando eu volto, ele já está dormindo. Só vejo o danado no domingo. Então quero dar uma lembrança pra ele. - E escancarou um sorriso largo. - Opa! Peraí que vou pegar o pão do doutor!
O meu colega de balcão acompanhou com os olhos os passos apressados até a chapa aonde outro sujeito mais jovem e alto preparava os sanduíches e pãezinhos. Ele deixou então o jornal de lado e se ajeitou na cadeira. Quando voltou com o pedido, o atendente retomou a história:
- Sabe doutor? Passarinho me lembra meu pai. Todo domingo ele me chamava “Toiiiinhoo! Vamos limpar a gaiola do canário!”. Eu ia todo contente!
Acabou de falar, abriu os classificados, olhou para os fregueses e como se tudo estivesse em ordem voltou para o jornal.
- Ah! Tá aqui...
Tirou um papel do bolso e fez umas anotações, dobrou o jornal com cuidado e colocou no mesmo lugar sobre a pasta.
- Obrigado mesmo doutor! Tá gostando?
O outro com as bochechas cheias de pão e café com leite balançou a cabeça afirmativamente. Então ele gritou para o sujeito na chapa.
- Valdir! Fiz as pazes com a velha!
- É mesmo seu Antônio? O senhor brigou com ela?
- Te contei não? Xiiiii rapaz! A gente se melindrou semana passada e a coisa ficou preta lá em casa. A mulher não quis nem mais chegar pra um agrado. - Falou isto olhando para o chão e fazendo carinha de triste.
Valdir me olhou rindo e falou:
- Mas e ai seu Antônio? O que o senhor fez?
- Ontem sai daqui e passei ali na banca de flor e comprei um botão de rosa clarinha...
- E o que ela achou? Já deu pra ela?
- Dei hoje de manhã! A gente saiu pro trabalho e levei a rosa escondida. Tava mais bonita de ver! Ai fomos andando para o ponto e no meio do caminho eu parei. Ela olhou pra mim e já ia reclamar mas eu fui antes e pedi desculpa. Dei a flor pra ela e não falei mais nada.
Olhei em volta, a maioria dos clientes nem prestava atenção. Apenas eu, meu vizinho e o estudante. Ele, com a caneta largada sobre o papel, sorvia o café segurando o copo com as duas mãos enquanto ouvia a conversa.
– Mas então fizeram as pazes? – O homem ao meu lado, já estava procurando alguma coisa nos classificados quando levantou a cabeça e fez a pergunta.
- Doutor! Essa mulher é dura! Pegou a florrr rápido e pulou pra dentro do ônibus. Mas eu vou lhe contar uma coisa. Eu bem vi ela olhando a flor e sorrindo.
Olhei o relógio e vi que precisava ir. Levantei-me e despedi dos amigos. O dia estava frio e parecia que ia chover. No caminho para o escritório, quase fui derrubado quando aquele rapaz me cortou apressado entrando na loja de flores.
Seu Antônio ganhava a vida servindo xícaras de atenção, carinho e esperança. Mas sempre que podia ele também nos trazia um café, um suco, pães torradinhos ou não.
11 de Outubro de 2004
PS: Existem 2000 pessoas no mundo, o resto são coadjuvantes.
;)